Nossas conquistas representam o que está por vir

Estamos cada vez mais próximos à derrota do fascismo e da derrocada escatológica que se arrastou nos últimos anos

Sento para escrever esta pequena retrospectiva de um ano de trabalho incessante e incisivo, trazendo à memória cada um dos passos que constroem a grande linha histórica que é o mandato da primeira vereadora negra, após 327 anos da cidade de Curitiba. Algo no entranhado da consciência me lança à inquietação e amarra em nós minhas emoções na garganta. Vencer a corrida eleitoral e chegar a um espaço negado às mulheres negras por mais de trezentos anos, é um feito inédito. Que se faça ecoar aos quatro cantos do mundo, às vinte e quatro horas do dia que fui a primeira.

Sobre o vencer

Olho as pegadas desta vitória, no distante, e os ventos uivam no meu ouvido trazendo consigo a voz de quem lutou — e luta — à luz da consciência e da ancestralidade. Eu sou porque nós somos, eu sou porque lutamos. Escrever sobre nossa vitória, sobretudo, é escrever sobre a luta de quem veio antes de nós. Na vibração dos nossos passos eu sinto o suporte secular da luta das negras e negros que não sucumbiram e não retrocederam. Dentro da retrospectiva deste mandato cabe a resistência dos quilombos, a insurgência dos Malês, a realeza, e a riqueza cultural do meu povo. Cabe o dia 7 de julho inteiro, no estremecer das escadas do Teatro Municipal de São Paulo, cabe o choro do violão e a festa das percussões em um samba uníssono.

Nossa vitória — longe de ser só minha — é continuação das vitórias que me antecederam. É invocando o canto de sua grandeza que relembro minha caminhada, que deu voz a tantas outras e tantos outros que ainda estão por vir. Que se levante o canto de Marcelo D2 para repetir o que a história já escreveu: nossa vitória não foi, não é e nunca será um acidente, mas resultado da coragem incansável que hoje sustenta nossas batalhas.

Sobre o chegar

A imagem mais antiga de Curitiba, pintada por Jean Baptiste Debret, mostra o alto das Ruínas de São Francisco frente ao que ainda se tornaria a Praça Garibaldi. Ao fundo, a serra do mar desenha os limites entre céu e terra e as pequenas construções dão o movimento a uma cidade que aos poucos ganha vida. Porém, não são as construções singelas que chamam nossa atenção e sim uma figura enegrecida no canto inferior esquerdo do quadro, que atrai os olhos de quem observa para si. Acredita-se que esse homem negro, um ex-escravizado agora liberto, foi o primeiro curitibano a ser retratado em uma imagem. A cidade que mais se orgulha de ser “alva mais que a neve”, de ter um passado conectado com as raízes europeias e caucasianas, foi representada por uma pessoa que carrega a marca do alvo do apagamento.

Curitiba nunca foi uma cidade europeia, apesar dessa imagem tanto se vender e se fazer ouvir ao redor do país. Curitiba se fez europeia a partir da invisibilização, marginalização e apagamento da presença negra na cidade, algo que não é incomum ao redor das metrópoles nacionais, mas que aqui se sucedeu de forma quase perfeita, graças à sua arquitetura pensada minuciosamente para que os negros e negras e pessoas pobres se escorem por entre as paredes do labirinto de concreto e fiquem longe das paisagens belas e dos campos alvos que lembram a Ucrânia no inverno.

Assim como todos os espaços históricos desse país, foram mãos negras que construíram cada centímetro dessa cidade. Não há prédio histórico, calçadas ou ruas que não tenham sido pavimentadas, erguidas e tocadas por mãos negras no exercício de sua força de trabalho, seja fruto da exploração racial ou da desigualdade social ao qual nosso povo ainda é jogado, após uma abolição inacabada. Nossa chegada a um espaço como a Câmara Municipal faz dar voz ao que as veias que pulsam no subsolo desta cidade já sabem: Curitiba é uma cidade que se construiu com a contribuição do nosso povo. E nossa presença ecoa por todos os cantos, junto com as vozes de quem me antecede.

A chegada é circular. E essa cidade há de lembrar que seu sangue é negro e que suas raízes não vieram de uma casta europeia.

Sobre o ocupar

“O princípio da ausência, o princípio no qual o que existe deixa de existir. E é com este princípio da ausência, que espaços brancos são mantidos brancos, que tornam a branquitude a norma nacional. A norma e normalidade que indicam quem pode representar a verdadeira existência humana, só uma política de cotas pode tornar o ausente existente!”

Grada Kilomba descreve com enorme precisão como a ausência de pessoas negras nos espaços legitimam a identidade branca como um ato universal, algo que é a regra e tudo que está à esquerda disso não passa de uma inconveniência e uma imperfeição no sistema. E como imperfeições ambulantes que desafiam a ordem e a circunstância em que tudo foi criado, atravessamos o Rubicão, e ocupamos o lugar que nos foi negado há mais de três séculos.

O enfrentamento é uma tarefa árdua, que requer a disciplina dos que comandam a ação revolucionária e também o coração dos educadores. As batalhas diárias que encontramos em um espaço onde nossa presença é um corpo intruso, incomum e imperfeito são a prova das cisões e fissuras na ordem das coisas, e toda e qualquer movimentação pode parecer um grande terremoto — e realmente é, se você olhar pelo lado das identidades universais, que de repente não estão mais no holofote das políticas públicas. Por outro lado, quando a ordem é injusta, a desordem em si já é um princípio de justiça, e nada mais agitador que virar a mesa do poder e ocupar os espaços que são nossos por direito.

Sobre o que virá

Em cada momento desse texto, tentei compilar algumas das sensações que ficaram nesta jornada que travamos durante um período tão desaluminado da nossa história enquanto povo e país, mas ainda há muito pela frente. Nas palavras de Paulo Freire, “em um país como o Brasil, manter a esperança é em si um ato revolucionário”, e é com esse ato que iremos trazer de volta o que nos foi covardemente extorquido. Com a força dos ombros que nos levantam e nos dão o impulso para ir mais além e conquistar o que ainda é preciso para que avancemos, e restaurar a felicidade ao povo.

Estamos cada vez mais próximos à derrota do fascismo e da derrocada escatológica que se arrastou nos últimos anos, e nossas conquistas até aqui não são pequenas, mas sim representam o que está por vir e que se constrói com cada vez mais força. Nossa vitória não será por acidente, pois nossa resistência não se fez por acidente: as batalhas travadas, a recusa em abaixarmos as cabeças e o enfrentamento diário aos retrocessos que vivemos até aqui nos ajudaram, e com essas ferramentas triunfaremos.