Em audiência pública realizada pela Câmara Municipal de Curitiba, nesta sexta-feira (22), lideranças de movimentos sociais, pesquisadores e autoridades destacaram a urgência de Curitiba resgatar as histórias das pessoas negras na construção da cidade.
O evento foi uma iniciativa da Comissão Especial da Visibilidade Negra, criada pelo Legislativo para analisar e revisar as denominações de monumentos e edificações públicas, com o objetivo de ampliar a presença do povo no contexto histórico e turístico da cidade.
A vereadora Carol Dartora (PT), presidente da comissão, abriu os trabalhos saudando todos os presentes e lembrando que a criação do colegiado é fruto de um grupo de trabalho encabeçado pela vereadora Maria Letícia (PV), na legislatura anterior.
Na sequência, destacou que Curitiba chegou a ter 40% de população negra, mas que atualmente esse percentual é 20% porque, após a abolição, foram substituídas por pessoas brancas trazidas da Europa. Explicou também que a população negra tem um sentimento de não pertencer à cidade, porque não se vê representada nos espaços públicos.
“Então é mais do que urgente que a gente possa fazer essa revisão e por isso eu fico radiante de saber que a gente chega neste momento na Câmara, tendo essa comissão de visibilidade, onde a gente pode tratar dessas temáticas a partir desse espaço institucional”.
“Essa audiência é um avanço. É muito legal ver que esse evento está acontecendo. Era isso que a gente pensava lá em 2019, quando a gente criou com esse grupo de trabalho, que a Carol citou, a Comissão de Visibilidade Negra para levantar esse debate na Câmara”, comentou a vereadora Maria Letícia.
Para o vereador Herivelto Oliveira (Cidadania), relator da comissão, uma das finalidades do colegiado é, “não só dar visibilidade para os negros, mas também fazer com que os negros ocupem os espaços na cidade, que os negros sejam representados na cidade conforme a sua população”.
Vice-presidente da comissão, o vereador João da 5 Irmãos (PSL), defendeu a necessidade de mais pessoas conhecerem esse lado da história de Curitiba. “Às vezes, as pessoas mais humildes, sobretudo as pessoas negras, ficam esquecidas. Acho, então, que é uma questão de justiça valorizar essas pessoas que tanto prestaram serviço no passado para a nossa cidade”.
“Recontar a história, contar a história do nosso povo, principalmente dessa parcela da população negra que precisa sim de visibilidade, precisa sim de um debate. Espero que nós venhamos com políticas públicas e um resultado positivo para que Curitiba avance nesta visibilidade do nosso povo”, disse o vereador Osias Moraes, que é membro da comissão.
A vereadora Professora Josete (PT) foi enfática ao dizer que vivemos em uma sociedade racista e pontuou que o trabalho da comissão da Visibilidade Negra fortalece o compromisso com a luta antirracista.
“É urgente, é necessário e é inadiável esse debate sobre a visibilidade da presença negra na nossa cidade. Nós sabemos que Curitiba não é, nem nunca foi, uma pequena Europa, como insistem alguns saudosistas de uma aristocracia que a gente pode dizer falida”, disse.
Devido a outros compromissos no mesmo horário, os vereadores Oscalino do Povo (PP), Renato Freitas (PT) e os deputados estaduais Goura Nataraj (PDT) e Professor Lemos (PT) justificaram a ausência e foram representados por integrantes de suas assessorias.
Rede de Mulheres Negras, Comissão Estadual da Igualdade Racial da OAB do Paraná, Coletivo Enedina/UFPR, Coletivo Resistência Ativa Preta, Secretaria Estadual do Movimento Negro do PDT do Paraná, Movimento Negro Unificado, Enegrecer e Movimenta Feminista Negra também fizeram uso da fala, saudando a iniciativa da Comissão da Visibilidade Negra e reforçando a urgência de avançar em políticas de reparação da memória do povo negro em Curitba.
Especialistas
Defensora Pública da União, Rita Cristina Oliveira citou que participou do grupo de trabalho que deu origem à proposta de criação da Comissão da Visibilidade Negra no Legislativo. Em sua fala, destacou que a iniciativa está em consonância com a Constituição e lembrou aspectos históricos que foram construindo o racismo estrutural presente na sociedade e nas instituições.
“Tudo isso forma uma subjetividade, um funcionamento institucional que é hostil às pessoas negras. É urgente que isso seja reparado através de medidas políticas e jurídicas e essa comissão está fazendo esse trabalho e eu espero que chegue até o seu final com êxito no sentido de propor diversas ações de reparação histórica, com a ajuda de diversos especialistas que estão aqui presentes e que trabalham com essa temática,” comentou.
Doutora em Sociologia, a professora da UTF-PR, Andrea Kominek, falou sobre dois livros, resultado de seus trabalhos de pesquisa com outros estudiosos. O primeiro deles é “Os Nomes da Placa: A História e as histórias do monumento à Colônia Afro-brasileira de Curitiba”. Disponível on-line: clique aqui.
A obra resgata a história de 68 personalidades negras que tiveram seus nomes gravados em uma placa instalada na Praça Santos Andrade, por ocasião do centenário da abolição da escravatura.
“Porém, só tem o nome da pessoa. Não diz a profissão, não tem uma visibilização de quem são essas pessoas. Ao contrário do que a gente vê da população branca”, disse a professora, explicando que foi necessário um trabalho de investigação para revelar a história dessas pessoas que foram importantes para a história de Curitiba e do Paraná.
O segundo livro leva o nome de “Para além da placa: outras histórias da negritude em Curitiba”. Como o próprio título sugere, segundo Andrea, é resultado de desdobramentos e informações obtidas durante a produção do primeiro livro. Disponível on-line: clique aqui.
Na sequência, a professora da UFPR, Joseli Mendonça, contou como surgiu o projeto de extensão que ela coordena, chamado de AfroCuritiba e que promove um passeio sobre pontos da região central de Curitiba que contam histórias de pessoas negras na cidade.
A pesquisadora lembrou que a iniciativa surgiu após constatar divergência entre dados encontrados em pesquisas científicas e a narrativa oficial da cidade. “O que eu via nos estudos era a pujança da história dos negros nesta cidade, que não correspondia àquela imagem que a cidade projetava de si própria nos monumentos, nos parques no percurso do ônibus de turismo”, explicou.
O passeio também pode ser feito de forma virtual. Acesse aqui: https://afrocuritiba.afrosul.com.br/
A pedagoga Edelangela Macena Viana, idealizadora do grupo Mulheres pelo Cajuru, contou que ficou fascinada após fazer o passeio e entender a cultura que tinha na cidade. “Só que apesar daquilo dali, eu me senti vazia porque quando eu saí do centro e voltei para a periferia, eu entendi que o meu povo tinha passado pelo centro, mas não estava mais lá. Agora a gente está na periferia”, relatou.
Para Edeangela, é preciso popularizar as informações sobre a história do povo negro em Curitiba com uma linguagem simples. “A gente precisa levar esse conhecimento para a periferia, para quem não vai assistir essa audiência hoje, para quem não entende o que é de fato o racismo,” complementou.
Presidenta do Conselho Municipal de Política Étnico Racial de Curitiba, Regiane Sacerdote falou sobre preconceito e outras dificuldades enfrentadas pelas religiões de matriz africana, como casos de apedrejamento e de até incêndios criminosos. Ela apresentou o pedido de criação de uma legislação que ofereça proteção aos templos.
“Infelizmente a nossa religião aqui em Curitiba não é falada. Eu sou uma mãe de santo que tenho o hábito de andar com todas as minhas vestes na rua. E acontecem várias situações onde me perguntam assim: “Você é da Bahia?” Quando eu falo que sou de Curitiba, nascida aqui, ninguém acredita. É como se eu virasse um ET”, relatou.
Após as falas dos membros da mesa, foram abertas as inscrições para os demais participantes e o debate. A audiência durou cerca de três horas. Agora, todas as sugestões e contribuições apresentadas pelos especialistas e pela comunidade serão encaminhadas pelos membros da Comissão de Visibilidade Negra, podendo, inclusive, resultar em projetos de lei.